Quem matou a Esperança, digo, a Vitória?

Não é à toa que o teatro é uma das manifestações artísticas mais antigas do homem: as suas origens remontam há mais de 4500 anos, quando ainda estava ligado a práticas rituais e religiosas, como as peças sagradas no Egito Antigo sobre o mito dos deuses Osíris e Ísis, passando pelos gregos e por toda a Idade Média.

Deste modo, podemos concluir que está na nossa essência representar. E começamos bem cedo. As crianças passam a infância toda a representar. No jogo do “faz de conta”, a criança passa por várias etapas do teatro: é o personagem que ela quer, no cenário que ela escolhe, com o figurino que improvisa ou imagina. Efetivamente, para as crianças e jovens, o teatro ajuda no seu desenvolvimento e formação, despertando o desejo pelo conhecimento. Desta forma, o teatro deve ser um complemento na educação, uma vez que ele auxilia trazendo a informação e o entretenimento de uma forma mais divertida e prazenteira.

Apesar de muitas vezes não receber o seu devido valor, o teatro é fundamental na formação cultural de qualquer pessoa já que ele também nos faz conhecer um pouco mais sobre a nossa própria cultura. Infelizmente, como tanta atividade nobre que existe no nosso país, não lhe é dado o devido valor. Sobretudo, o teatro menos “sério”, mais divertido, aquele que tem o intuito de entreter as massas, nomeadamente as comédias de costumes, as revistas (exceção dos mega-musicais de Filipe Lá Féria).

No entanto, devemos dar mais valor às coisas simples da vida. Nesse aspeto, o teatro que é uma simples apresentação, pode trazer muito conhecimento para o público, já que o mesmo procura transmitir a melhor mensagem possível.

Ao longo dos quatro anos que passei no Agrupamento de Escolas de Tarouca tive a oportunidade de assistir a grandes peças de teatro da autoria e encenação de Jorge Saraiva, líder conceituado do grupo reguense “Tear D’ouro”, professor do Agrupamento de Escolas de Tarouca, meu cliente e amigo; aliás somos unha com esparguete.

No presente ano letivo, enquanto as maias marcavam a sua presença amarela e obsessiva na Serra de santa Helena, no Auditório Adácio Pestana deu-se um crime. Foi morta a Vitória, senhora de elevada auto-estima, mas de feitio detestável e vida amorosa insinuante. O crime teve lugar numa noite tépida de 29 de maio, já o sol se tinha posto lá bem para trás das Meadas e do Marão. A descarada senhora foi morta na taberna do Bairro das Tamanquinhas, mesmo à frente do senhor presidente da Câmara Municipal de Tarouca, do senhor Diretor do Agrupamento e restante direção, de demais entidades públicas e privadas, de professores, pais e alunos. A Vitória foi envenenada! Morreu em Tarouca! Outras Vitórias morreram nas Antas, em Amesterdão ou Oeiras.

E não é que todas as personagens tinham motivo para matar a Vitória? Tarefa árdua para o soldado da GNR, o inolvidável guarda Abel. Mas foi o espetro da falecida Vitória que importunou cada uma das personagens e revelou ao público os individualizados motivos do crime. O Mestre Vidente, interpretado por Jorge Saraiva, réplica “updated” de um suposto vidente e mercador do agrupamento de escolas, pareceu-me, a princípio, o assassino. No entanto, após algumas peripécias que fazem parte do conflito que é exigido a um texto dramático, acabámos por descobrir, no desenlace da peça, que a envenenadora era a “falsa” invisual. Aliás, cega de vingança, presumimos que também tenha “enviado” para o inferno o tresloucado discípulo de Baco e António Martins.

Devo destacar na peça, a crítica suave mas eficaz, sem ser grosseira, às personagens-tipo da sociedade portuguesa: a dona da Tasca que acha que tem uma filha a estudar para ser doutora (mas a dança do varão era a cadeira onde tinha 20), a cabeleireira de origem russa (excelentemente interpretada), a desempregada que tinha sido modelo e amante de Cristiano Ronaldo e usufruía do RSI), a empregada vistosa e namoradeira, etc.

Destaco ainda a presença de duas crianças em palco, com uma postura exemplar: o suposto filho do Cristiano Ronaldo e a filha da russa Seminova.

Como figurantes a prestação soberba de quatro jovens provenientes da Escola-sede do Agrupamento. Foram os jogadores da sueca que frequentavam a taberna.

Inesquecíveis ficaram as expressões anafóricas: “Porque eu, estou fora de serviço”, do guarda Abel e “o meu mestre é o António Martins”.

Mestre nesta vida é quem não tem medo de subir ao palco e enfrentar o público e nisso, Jorge Saraiva e a sua equipa são corajosos e talentosos. Não são profissionais, mas sabem tocar o público com a sua presença e proximidade. Sabem morrer e renascer em palco, sabem chorar e rir, sabem amar e sofrer... São pessoas… vivem o que representam, representam o que vivem. O mundo é este palco… afinal quem matou a esperança? E eu sei que a esperança não é uma espera. É a “parição” do futuro. Não seremos, todos nós atores que, à nossa maneira, representamos o papel de parteiros do esperado e do inesperado?

(por António Martins)